- Peter Sellers em “Dr. Fantástico”, de Stanley Kubrick (1964): naturalizado americano, mas não consegue controlar a mão nazista
SE HÁ uma coisa que a gente aprende em 12 anos conversando com diplomatas é que, sempre que um deles diz que uma negociação “ainda tem muitas portas abertas”, é porque a maioria delas já se fechou. Na semana passada, uma alta figura da diplomacia brasileira usou exatamente essa frase para se referir ao atual status das conversas preparatórias da Rio +20.
As dificuldades podem se resumir da seguinte forma: ninguém quer nada com a conferência, exceto as Nações Unidas e, claro, o Brasil. O mundo encontra-se hoje no espírito diametralmente oposto ao globalismo que marcou a Eco-92. Saem a “aldeia global” e o “fim da história” e entram o protecionismo, o “tsunami monetário”, as preocupações com segurança (energética e militar) e, por último, mas não menos importante, a morte anunciada do euro, que faz os maiores paladinos da causa ambiental — os países da UE — jogarem na retranca.
Esse caldo explica o anódino “rascunho zero” da Rio +20, o texto-base de negociação que não agradou a ninguém, mas que ninguém parece disposto a abandonar. Para complicar ainda mais as coisas, o pequeno mas barulhento grupo Alba (Aliança Bolivariana para as Américas), liderado pela (ahem, petroleira) Venezuela, resolveu na última reunião preparatória, em Nova York, boicotar até mesmo a proposta de produção de um novo rascunho. Monta-se o cenário de sempre de impasse em conferências ambientais da ONU, que já motivou meu colega Fábio Zanini, editor de Mundo da Folha, a brincar comigo no começo de uma delas: “Pelo menos você tem o título já pronto – ‘conferência acaba em fracasso'”.
E, claro, há a questão da participação. A ministra Izabella Teixeira (Meio Ambiente) enche a boca para falar das presenças confirmadas de uma centena de mandatários, mas vai ser muito difícil legitimar a Rio +20 sem Barack Obama e o britânico David Cameron (se bem que o outro Cameron, o James, provavelmente virá, para desgosto de Dilma Rousseff). Os dois já avisaram que não virão, e o flop da Cúpula das Américas, neste domingo, onde Obama se viu sozinho tendo de defender anacronismos como o bloqueio a Cuba e a guerra às drogas, só fez fechar mais uma portinha. O Brasil, claro, tem mais do que qualquer um noção do quadro, e resolveu adotar duas estratégias:
1 – Iniciar uma negociação paralela, como a que ajudou a articular na conferência do clima de Durban, na África do Sul, no ano passado, e que ajudou a salvar a discussão aos 47 minutos do segundo tempo; e
2 – Fazer o jogo do contente, minimizando o esvaziamento e apontando as oportunidades “alucinantes” que a conferência trará para o Brasil caso o país consiga internalizar a agenda da economia verde.
A primeira estratégia parece ser o novo modus operandi na ONU, uma espécie de “multilateralismo de resultados” cuja expressão máxima, para mim, é a frase da chanceler mexicana Patricia Espinosa: “Consenso não significa unanimidade”. Nada contra, pessoalmente.
A segunda, porém, traz um risco enorme do que eu chamo de “Síndrome de Dr. Fantástico”. Para quem tem não cresceu durante a Guerra Fria, Dr. Fantástico é um personagem do filme homônimo de Stanley Kubrick sobre a guerra nuclear. Trata-se de um cientista alemão emigrado para os EUA para assessorar o presidente em questões atômicas que, provavelmente por alguma sequela de guerra, tem uma mão que ele não consegue controlar e que faz saudações a Hitler e tenta enforcá-lo a todo instante.
Em questões de ambiente e economia verde, o Brasil é o próprio Dr. Fantástico: diz-se moderno, gaba-se de sua matriz energética “renovável” (a impropriedade do termo é discutida abaixo) etc. etc., mas na prática, especialmente no governo Dilma, dá todos os sinais trocados. Vou me abster aqui de enumerar esses sinais, recomendando apenas o post inicial deste blog e a
boa entrevista de João Paulo Capobianco à revista “Época” (disclaimer: Capô, como braço direito de Marina Silva, tem uma agenda política, então suas críticas, em geral corretas, precisam ser tomadas com um grão de sal).
Contradições do tipo existem em todos os governos, até na ambientalmente corretíssima Noruega. Mas, no Brasil, a mão nazista do Dr. Fantástico parece estar levando a melhor. Que o diga a
concessão queima-filme que Dilma está fazendo à bancada ruralista na reta final da negociação do Código Florestal. Diante da impossibilidade de resolver seus problemas internos e apresentar uma liderança que se preze, já que isso exigiria um grau de consenso em torno da questão ambiental que não existe no Estado, o Brasil tergiversa e resolve pôr ênfase na erradicação da pobreza, que é uma agenda consensual. Dessa forma, acaba se aliando com a postura dos Estados Unidos, que enxergam na Rio +20 uma conferência sobre comércio.
Negociar acordos paralelos ao falido sistema da ONU é um bom começo — na verdade, parece ser uma das únicas portas ainda abertas para a Rio +20. Mas terá pouca serventia num país que não sabe como tratar a questão ambiental “estrategicamente”, para usar uma palavra de gosto da ministra Izabella.
Quem viu o filme de Kubrick sabe qual das mãos do Dr. Fantástico triunfa no final.
Muito boa a analogia! Acredito que, se houver uma salvação para essa Conferência, ela partirá da sociedade civil…
Por que entre colchetes para o nome do blog?
Ana,
Boa pergunta. Tem uma explicação lá embaixo no primeiro post. Vou transferi-la para algum lugar mais visível. Obrigado pela observação.