James Love muito lock
07/05/12 19:49CAUSOU POUCA repercussão na grande imprensa científica internacional a entrevista recente do cientista britânico James Lovelock à rede americana MSNBC. É pena, porque Lovelock abre nela uma série de reflexões sérias sobre o papel dos comunicadores ao entregar à sociedade a mensagem da urgência e da gravidade do aquecimento global.
O resumo da ópera é que o guru ambientalista de 92 anos, famoso propositor da Hipótese Gaia (a de que a Terra se comporta efetivamente como um organismo vivo), admite que exagerou na dose ao afirmar, em 2006, que o aquecimento global mataria bilhões de pessoas até o fim deste século — 6 bilhões, para ser mais preciso — e que os poucos casais humanos sobreviventes teriam de morar no Ártico.
Não ria, leitor. A previsão de Lovelock, enunciada pela primeira vez na “Rolling Stone” (como sabemos, um importante periódico científico), era obviamente uma maluquice sem qualquer base científica. Lovelock parece ter reconhecido isso, um sinal de humildade que divulgadores de ciência deveriam mostrar mais frequentemente.
Mas o britânico não foi o primeiro comunicador de ciência a avançar o sinal do apocalipse e falar besteira sobre o clima num meio leigo. A dimensão dos impactos futuros da mudança climática é o ramo mais incerto e com menos pesquisas da ciência do clima, portanto, acaba se prestando a exageros. Para citar dois, há a famosa previsão de Paul Epsteim, de Harvard, de que a mudança climática levaria a malária ao norte da Europa (o norte da Europa jamais terá malária endêmica porque resolveu problemas de saneamento, nada a ver com o clima), e uma do Inpe de que 42 milhões de pessoas seriam atingidas pelo aumento do nível do mar no Brasil (essa é toda a população do litoral). Este blogueiro já caiu na esparrela em 2007 .
O resultado disso é que o público, em vez de se preocupar com o clima, acaba desconfiando dos cientistas, que no mais das vezes pouco têm a ver com a maneira como suas pesquisas são reportadas e estão sempre prontos a apontar as limitações delas. Como ninguém entende estatística, as probabilidades, nuances e senões somem e sobra catastrofismo, desinteresse, desengajamento. O fenômeno é conhecido como “fadiga climática”. Quem já a experimentou põe o dedo aqui. Em sua entrevista, Lovelock reconhece que soar as trombetas alto demais contribuiu com isso.
Há, porém, um outro lado na entrevista de Lovelock que merece atenção dos comunicadores de ciência, por sua ilegitimidade. Dono de credenciais importantes por pesquisas que fez e hipóteses que formulou 40 anos atrás, Lovelock dá ao leigo a impressão de que é mais um cientista renegando suas “teorias”, da mesma forma como Stephen Hawking fez ao dizer que errara sobre os buracos negros na década passada. Ergo, a mudança climática é uma fraude e a ciência do clima está toda errada.
A argumentação de Lovelock gira em torno de dados de temperatura que mostrariam que a Terra “não aquece muito” desde o fim dos anos 1990, apesar do aumento constante das emissões de carbono. O problema é que os dados de temperatura mostram justamente o contrário: 11 dos últimos 12 anos foram os mais quentes já registrados. O gráfico abaixo, da Organização Meteorológica Mundial, mostra isso bem:
Como o ano de 1998 viu um aquecimento anômalo, os anos subsequentes (exceto 2010, tão quente quanto 1998) parecem “frios” em comparação. Mas essa “queda” nas máximas desaparece quando olhamos a tendência a partir de 1960 (a curva mais acentuada, indicando uma rápida aceleração do aquecimento no período) ou a partir de 1880, a série mais correta a observar, já que estamos falando de tendências de longo prazo. Aqui a curva é mais suave, mas ascendente mesmo assim.
Outro gráfico mostra os chamados “desvios da média”, com a evolução das temperaturas globais de 1850 (quando começaram as medições com termômetros) a 2010 comparadas a média 1961/1990. Mais uma vez, nenhum sinal de que o aquecimento global tenha “dado um tempo”, como sugeriu Lovelock, ou que a atmosfera “não esteja se comportando como esperamos”.
Mas, claro, no estudo de fenômenos complexos, como o clima global, uma andorinha só não faz verão. Vários outros dados precisam ser e são acrescentados ao quadro para que os cientistas possam afirmar qualquer coisa sobre tendências. Um deles é o derretimento do manto de gelo da Groenlândia, que acelerou JUSTAMENTE na última década, quando o aquecimento global “parou”, para quem acredita em Lovelock. O roxo na imagem significa maior perda de gelo.
Outro conjunto de dados é o do derretimento do gelo marinho do Ártico. Aqui, na verdade, a vida é pior do que a arte — ou seja, o degelo real observado (a linha vermelha) foi maior do que os modelos previam (o intervalo em azul, cuja média é a linha preta):
Em resumo, por mais que tenha tido sua importância para as geociências no passado, o nonagenário James Lovelock não é um cientista do clima praticante e nem tem pitacos a dar sobre o futuro de Gaia. Para azar das multidões de incautos e hippies que ainda compram seus livros.
PS: O cientista, blogueiro e tuiteiro incorrigível Roberto Takata dez um exercício interessantíssimo de “hindcast” (retroprevisão) em seu blog Gene Repórter. Ele plotou as temperaturas anuais médias observadas na última década com o que os modelos do IPCC previam nos anos 1990. Os dados reais acompanham incrivelmente bem as previsões, especialmente as do Terceiro Relatório de Avaliação, de 2001.
No GR comparei os modelos dos IPCC com os dados reais: http://genereporter.blogspot.com.br/2012/05/como-estao-as-previsoes-sobre.html
[]s,
Roberto Takata