Enquanto isso, nas Nações Unidas...
09/05/12 18:12
O PRESIDENTE DOS EUA, Barack Obama, acaba de declarar seu apoio ao casamento gay, em pleno ano eleitoral. Seguindo essa lógica de conquistar votos à esquerda, só falta agora dizer que virá à Rio +20.
A atitude de Obama contrasta com o avanço (na verdade, a falta dele) dos direitos sociais e da igualdade de gênero daquele que deveria ser o documento orientador do futuro da humanidade: o rascunho do texto-base da Rio +20, “O Futuro que Queremos”.
Toda a discussão sobre gênero, direito reprodutivo, saúde da mulher e planejamento familiar no documento está entre colchetes, sinal de controvérsia entre os países sobre pontos do texto. Casamento igualitário, então, nem pensar. Em grande parte cortesia dos diplomatas do Vaticano.
Sim, leitor, a Santa Sé tem diplomatas! E eles andam com uma roupinha bem parecida com uma batina. O simples fato de aqueles jovens brilhantes precisarem estar lá naquelas intermináveis sessões de negociação na sede ONU, em Nova York, nas quais textos eram projetados num powerpoint para serem “canetados” ao vivo por 190 países já lhes indica uma propensão à santidade — ou ao martírio.
Uma olhada rápida no documento produzido no dia 4 de maio na última reunião informal de negociações da Rio +20 mostra algumas intervenções reveladoras daquilo que o Vaticano pensa sobre o bem comum e o futuro sustentável da humanidade. E pode desapontar alguns pios que pensam que a Santa Sé é qualquer coisa mais que um Estado-membro da ONU defendendo os próprios interesses:
We reaffirm our commitment to strengthening international cooperation and addressing the persistent challenges related to sustainable development [for all, in particular developing countries – G77], taking into account the need for enhancing [gender – Holy See delete
Aqui os santos padres pedem a supressão da expressão “levando em conta a necessidade de aumentar a igualdade de gênero”. Eles não querem saber da palavra “gênero”. Outro colchete pede veto a uma menção à saúde reprodutiva da mulher, considerada peça fundamental para o desenvolvimento sustentável — afinal, menos filhos significam menos pobreza.
We emphasize that sustainable development must be inclusive and people-centered, benefiting and involving all people, including youth and children. We recognize that gender equality and the empowerment of women [to make full use of their potential, including through access to [sexual and reproductive – Holy See delete] health [services/care – Holy See],
Meu amigo, editor de Ciência da Folha e católico devoto Reinaldo José Lopes não se espantou com as intervenções da Santa Sé. Ele explica:
“O magistério papal sempre viu com muita reserva todos os métodos de contracepção artificial e de manipulação da reprodução humana em geral, e isso se fortaleceu a partir da ‘Humanae Vitae’, a encíclica de Paulo 6º sobre o tema em 1968. Simplificando muito a argumentação teológica: a Igreja acredita que não dá para separar artificialmente sexo e reprodução. O sexo (entre homem e mulher) é visto como bom em si mesmo, mas desde que mantenha a abertura ao surgimento de uma nova vida humana, conforme o ‘plano de Deus’ para a biologia humana. Daí a recusa a disponibilizar a todos medicina reprodutiva moderna, e o medo de que a linguagem da ‘igualdade de gênero’ abra a porteira para aborto legal e barato, por exemplo”.
Apesar de ser uma teocracia de mentalidade medieval, o Vaticano está longe de ser o país mais duro ou retrógrado do mundo ao tratar de questões de desenvolvimento sustentável. Para citar apenas um de vários parágrafos do texto da Rio +20, quando se fala de “planejamento familiar voluntário”, o G77 e a Rússia se juntam ao papa para pedir a supressão da frase — temendo que isso seja uma arapuca dos países ricos para impor ao Sul esterilização em massa ou qualquer outra limitação populacional. E os EUA, do liberal-quase-comunista Barack Obama, fazem coro com Sua Santidade ao pedirem a exclusão de uma menção à inocente Declaração Universal dos Direitos Humanos no texto (para não melindrar o Tea Party?)
O problema é que isso reflete a situação deseperadora do processo decisório da ONU. Cada um dos seus 193 países tem direito a veto, ou no mínimo a criar uma boa confusão numa negociação internacional. Assim, um Estado teocrático do tamanho de um bairro de Roma e as maiores democracias do mundo, a Índia e os EUA, têm o mesmo peso deliberativo. É preciso que seja assim? Acho que é. Mas que fica difícil decidir questões urgentes — como o futuro da humanidade — desse jeito, isso fica.
Por q o Vaticano, q não é um estado membro, só um observador, tem direito à veto?
[]s,
Roberto Takata
Boa pergunta. Eu nunca vi ninguém do Vaticano nas negociações de clima, por exemplo. E não sei se a dinâmica muda na negociação formal. De qualquer forma, eles fazem um bocado de barulho.