SE ALGUÉM tinha esperança de que a presidente Dilma Rousseff pudesse energizar com sua liderança política a desempolgada Rio +20 e conduzir o mundo a um brilhante futuro sustentável, bem… pode esperar sentado. A julgar pelo polêmico discurso proferido na semana passada durante reunião do Fórum Brasileiro de Mudanças Climáticas, a anfitriã da segunda conferência do Rio ainda enxerga ambições na agenda ambiental como “fantasia”.
“Ela não tem espaço, a fantasia. Eu não estou falando da utopia, essa daí pode ter, eu estou falando da fantasia. Eu tenho que explicar para as pessoas como é que elas vão comer, como é que elas vão ter acesso à água, como é que elas vão ter acesso à energia. Eu não posso falar: “olha é possível só com eólica de iluminar o planeta”. Não é. Só com solar, de maneira alguma”, discursou.
Há dois problemas cruciais nessa mensagem. Um é de conteúdo, outro, de emissor.
A presidente obviamente não mentiu ao dizer que não é possível iluminar o planeta só com energia eólica ou solar; não é. Assim como não é possível iluminar o planeta só com hidrelétrica. Ou nuclear. Ou carvão. Ou gás natural. Dilma usou o velho truque retórico que Carl Sagan chamava de “tática do espantalho”: atribua a seu adversário uma premissa falaciosa e derrube-a em seguida. Até aí, sem problemas; faz parte do arsenal dos políticos.
O que preocupa mesmo na crítica da mandatária às ditas energias “alternativas”, porém, é sua aparente falta de visão de futuro. Há apenas quatro anos, muito técnico competente do setor elétrico (área onde Dilma se criou) apostaria que a energia eólica não seria competitiva no Brasil tão cedo e chamaria de “fantasia” qualquer afirmação em contrário. Em dezembro passado, porém, 39 de 42 projetos de geração leiloados pela Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica) foram eólicos, com preço médio em torno de R$ 100 o megawatt. A eólica ficou competitiva com a hidrelétrica.
O que aconteceu? Os mesmos eletrocratas dirão que foi por causa de incentivos dados pelo governo lá atrás. Mas a verdade é que o mercado criou essa realidade. E o Brasil virou um grande importador de tecnologia eólica, desenvolvida em países que apostaram mais cedo na “fantasia”, como Alemanha e China.
O mesmo está acontecendo neste exato momento com a energia solar. Graças a investimentos em pesquisa e desenvolvimento feitos (mais uma vez) por Alemanha e China, o preço do painel caiu e hoje o megawatt solar já custa o mesmo que a tarifa de energia paga por brasileiros clientes de 31 distribuidoras. Em vez de adotar um programa maciço de incentivo para dar o sinal para o mercado, porém, o governo brasileiro resolveu esperar. O argumento: ainda temos muita hidrelétrica barata para fazer. Mais uma vez, o Brasil abre mão de desenvolvimento local e espera para poder comprar tecnologia chinesa. Nosso companheiro de Brics apostou na “fantasia” e hoje tem a maior fábrica de painéis solares do mundo, a Suntech, que domina 15% de um mercado que quase duplicou de tamanho só entre 2009 e 2010.
O berço esplêndido hidrelétrico impede que o Brasil injete a farta verba do BNDES em um programa maciço de pesquisa de tecnologias renováveis. Aqui até mesmo os EUA, que também têm energia farta e barata (a carvão), têm um exemplo a dar. O Departamento de Energia dos EUA tem um orçamento requisitado de US$ 1 bilhão só para desenvolver energia limpa em 2013. Gasta US$ 4,8 bilhões em ciência em 2012, US$ 275 milhões destes em projetos avançados de energia (o programa Arpa-E), que incluem US$ 30 milhões só para criar tecnologias que respondam à piada que Dilma fez em seu discurso sobre a impossibilidade de “estocar vento”. Ninguém investe tanto em “fantasia” à toa.
O segundo problema da fala da presidente é de ordem tática. Como “hostess” de uma conferência que pretende reunir 190 chefes de Estado e governo para discutir o futuro do planeta, Dilma não tem o direito de assassinar no berço, com uma declaração pública, nem a utopia (à qual diminui como algo tolerável, mas de forma alguma necessário, com a frase “essa daí pode ter”), nem a fantasia. Estas deveriam ser as molas-mestras da Rio +20. É atrás de utopia e de fantasia — e de inspiração — que 50 mil pessoas acudirão ao Rio de Janeiro em junho, porque a realidade de sempre (o “business as usual”) não lhes basta mais.
Dilma sabe disso, evidentemente, e deixa claro que sabe ao reconhecer em seu discurso, como me apontou um sábio diplomata, que nós temos de “mudar o patamar da discussão” e que a questão de geopolítica e clima “move o mundo e move posições”. Porém, ao colar-se tanto ao realismo, acaba dando razão a quem acha que a conferência não vai resultar em nada mesmo.
*
Este post inaugura o “Entre Colchetes”, um blog dedicado a expandir a cobertura ambiental da Folha e a apresentar os bastidores da Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável, a Rio +20. O nome faz referência ao sinal gráfico usado em textos de negociação diplomática para marcar temas polêmicos, sobre os quais não há consenso. Pretendo trazer aqui, durante os próximos dois meses, os principais “colchetes” da Rio +20 e do debate sobre desenvolvimento sustentável no Brasil, e traduzi-los daquilo que o embaixador argentino Raúl Estrada Oyuela chama de linguagem de “pervertidos” (o idioma paralelo da diplomacia ambiental) para o português. Bem-vindos, portanto, e até o próximo colchete.